(Por Delman Ferreira)
Belizário, o perguntador das perguntinhas pontiagudas, andava meio encafifado com o bombardeio de notícias sobre as eleições nos Estados Unidos. Foi lá pra mercearia de D. Sofia puxando assunto só pra ver o que o povo tava pensando.
Ficou ainda mais injuriado com o que viu e ouviu. Todo o Morro do Baco Baco estava empolgado. Era gente falando que “os americanos são isso, os americanos são aquilo”. No acento popular, soava como se falassem “usamericanos”. “Usamericanos pra cá, usamericanos pra lá”. Cada vez que aparecia qualquer coisa na TV sobre usamericanos, todo mundo parava o que tava fazendo pra prestar atenção. Até parecia notícia de futebol.
Obama já era íntimo. Se passasse pelo Baco Baco, iam chamar pra tomar uma e contar piadas de negão.
D. Sofia, percebeu que Belizário não tava gostando nada daquele oba oba, chegou-se e perguntou:
- Belizário, o que é que tu achas que vai acontecer se o Obama ganhar? Usamericanos vão parar de fazer guerras pelo mundo?
Belizário matutou, vacilou, ficou calado um tempo. Pensou que o melhor era continuar calado e deixar o povo curtir o espetáculo. Afinal, a opinião dele não mudaria absolutamente nada mesmo.
Ele tinha certeza que D. Sofia saberia ouvir. Confessou, somente pra ela, que não acreditava que muita coisa fosse mudar.
D. Sofia, disse ele, a impressão que eu tenho é que até agora ninguém sabe exatamente quem é esse Obama. A única certeza que a gente pode ter é que ele não é isso tudo o que aparece na TV. Ninguém é assim tão perfeito.
Toda aquela pose, toda aquela disposição, no sol, na neve, “na rua, na chuva, na fazenda", toda aquela felicidade. Cada corridinha, cada passada, cada parada. Cada gesto, cada olhar, cada sentimento. Cada ação, cada reação. Cada inspiração, cada expiração, cada pulsar do coração. Tudo é marketing, tudo é estudado, tudo é medido, tudo feito pra agradar do jeitinho que eles gostam. Assim como um produto que eles fazem propaganda. Uma mercadoria dessas que a senhora, D. Sofia, vende aqui na mercearia.
Fico muito preocupado porque ninguém sabe exatamente o que está guardado dentro daquele embrulho bem arranjado e bem vendido.
Não estou querendo dizer que o outro é melhor. O que acho é que não existem grandes diferenças entre eles. Um traz em si o velho estilo, sem muitos disfarces, é o velho soldado pronto para erguer a bandeira sobre todo e qualquer Iwo Jima. O outro é muito mais moderno, sabe falar a linguagem dos jovens, dos velhos, das mulheres, dos negros, dos hispanos, dos gregos e dos troianos, sabe usar internet, sabe olhar firme pra TV, sempre de voz macia, sem alterações, com emoções estudadas. "Hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás".
Sempre superior. Sempre o mesmo. Sempre o pensamento usamericano. Sempre o mesmo olhar usamericano para o mundo. Usamericanos sempre se comportaram como se o resto do mundo fosse um quintal no qual eles podem se apropriar do que quiserem para manter seu poder.
Obama diz que vai mudar o mundo (“Change the World”). Não seria melhor mudar o jeito que usamericanos vêem o mundo? Como ele pretende mudar o mundo? Com que métodos? Com que armas? Só com o charme? Mudar por quê? Mudar pra quê? Mudar o quê?
O velho soldado seria mais um sem brilho a ocupar a casa Branca por 4 ou 8 anos. Mentindo as mesmas mentiras de sempre. Fazendo as mesmas guerras de sempre. Combatendo o mesmo “terrorismo” de sempre. Com o mesmo macarthismo de sempre.
O outro vem envolto pela novidade, pela curiosidade, pela modernidade, pelo destaque que ganhou durante todo este tempo de superexposição na mídia mundial. Com toda a imagem carismática com que foi embalado.
Perigoso exatamente pelo charme. Torcemos para que nunca aconteça, mas, quem resistiria se o pop star do momento, o grande vencedor, cavalgando a maior máquina bélica do mundo, manejando a maior máquina de propaganda do mundo, resolvesse “to change the world” impondo padrões usamericanos? O mundo resistiria a mais do mesmo? Resistiria a uma nova onda de american way of life? O Planeta resistiria?
Qual seria a reação do pensamento colonizado aqui abaixo do equador se usamericanos resolvessem espichar olhares cobiçosos para nossa energia e para o que ainda nos resta de recursos naturais?
Usamericanos andam muito incomodados com a perda mundial do prestígio made in USA. Vão exigir do próximo presidente que recupere espaço e tempo perdidos. Como se dará a tentativa de retomada da hegemonia usamericana? Dada a crise do momento, como se dará a disputa pela nova ordem mundial? Com um doce olhar sorridente?
A queda de prestígio usamericana poderia levar à derrocada do pensamento único. O mundo poderia se abrir para a diversidade. A vitória de um negro nos EUA significa a vitória da diversidade? Ou pode significar o recrudescimento da tentativa de impor ao mundo padrões usamericanos?
Aproveitando o deslumbramento, a euforia, a curiosidade, a expectativa positiva, o prestígio e a receptividade para suas propostas, ele pode agir rápido - muito rápido. Antes que o mundo se recupere da ressaca da festa, poderá tentar, rápida e irreversivelmente, “change the world”.
Música, cinema, esportes, Walt Disney, Mickey Mouse, Zé Carioca, Carmen Miranda, coca-cola, fast food, obesidade, ser-mercadoria, vazio existencial - seremos novamente bombardeados pelo jeitinho usamericano de ser?
- Tá certo, tá certo, interrompeu D. Sofia, mas o que é que fazemos, então? Torcemos pelo outro?
Não, respondeu Belizário. Eles vão escolher o que acham que é o melhor para eles. Nós ficamos com nossos dois pés latino-americanos para trás. Não podemos beber da festa que é deles. Não podemos ficar deslumbrados. Não podemos ficar entorpecidos. Temos que desconfiar de tudo, principalmente das facilidades, das verdades e das certezas que quiserem nos vender. O que usamericanos pensam que é bom para os EUA, costuma não ser muito bom para a humanidade.
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